Conto: Não sei o que me dizem os teus olhos
Venho visitar-te. Custa-me tanto fazer estas visitas cordiais, apenas por simpatia, e ver-te assim. Não acredito que a minha presença – ou a minha ausência – te faça qualquer diferença. Mas neles faz. Nos teus filhos, nas tuas noras.
Estás sentada no cadeirão. Na verdade, mais parece que o cadeirão está a engolir esse teu corpo tão mirrado, tão desfigurado, tão frágil. Com a mão direita coças as costas da mão esquerda, tentando tirar algo que lá não está. Será que não reconheces as tuas rugas, a tua pele, as tuas veias salientes nessas mãos definhadas?
- “Olá!” – saúdo, tentando parecer animado – excessivamente animado. E tu olhas-me diretamente nos olhos. O teu olhar é vazio de reconhecimento, e eu noto o esforço que a tua mente faz para tentar compreender ou tentar lembrar.
- “Sabes quem é?” – pergunta-te a tua nora. – “É o teu neto. Tu sabes quem é o teu neto.”
E tu desvias rapidamente o olhar. Será que neto já não passa de uma mera palavra para a qual não encontras significado?
Inclino-me e peço-te um beijo. Voltas a fixar os teus olhos negros nos meus olhos mel. Aproximo-me lentamente. Não sei se ainda sabes o que é um beijo. Encosto a minha face à tua face.
- “Ande lá. Dê-lhe um beijinho.” – diz a minha mãe carinhosamente, mas tu, ainda assim, não reages.
Deposito um beijo e espero um pouco. O meu gesto deve ter despertado a tua memória física, o teu corpo deve ter reconhecido aquele movimento, aquele som – ou então o sentimento que o meu beijo transmite desperta a memória de um sentimento em ti. Lentamente unes os lábios e ouço o som típico de um beijo.
Insisto e encosto a minha outra face à tua outra face. A tua reação foi imediata. E surpreendes-me, beijando-me antes de eu te beijar a ti.